11/06/2015

João Simoes Lopes Neto terá reconhecido seu trabalho empreendedor e cultural em 2015 - 2016, no RS


   Em março o governador José Ivo Sartori assinou o decreto que institui o Biênio Simoniano. O evento foi realizado no salão Alberto Parqualini, do Palácio Piratini e contou com as presenças dos secretários de Estado da Cultura, Victor Hugo, da Educação, Vieira da Cunha e do Trabalho, Miki Breier.
   Em 2015 completam-se 150 anos de nascimento do escritor gaúcho João Simões Lopes Neto, e em 2016 cem anos da sua morte. Considerado por estudiosos e críticos como o maior autor regionalista do Rio Grande do Sul, Simões Lopes Neto buscou, em sua produção literária, valorizar a história do gaúcho e suas tradições. Pela importância destas datas, a Secretaria de Estado da Cultura (Sedac), em parceria com a Prefeitura de Pelotas e o Instituto Simões Lopes Neto, criou o projeto que deu origem ao decreto do Biênio Comemorativo.


Milton Ribeiro - jornalista e escritor Porto Alegrense descreve sobre o homenageado:
     Não é à toa que Contos Gauchescos faz parte da lista de leituras obrigatórias para o vestibular da UFRGS nos últimos anos. Ele ali está na justa companhia de José Saramago (História do Cerco de Lisboa), Guimarães Rosa (Manuelzão e Miguilim) e de outros. E de outros menores, deveria dizer. Claro, a lista da UFRGS não é garantia de qualidade — por exemplo, lá não estão Erico nem Dyonélio –, mas serve como comprovação de que o pequeno volume de 19 contos narrados por Blau Nunes está bem vivo.

Contos Gauchescos (1912) é o segundo livro de João Simões Lopes Neto (1865-1916), que também escreveu Cancioneiro Guasca (1910), Lendas do Sul (1913) e Casos do Romualdo (1914). O autor viveu 51 anos e publicou apenas quatro livros. Talvez sejam muitos, se considerarmos a colorida vida do autor.

Simões Lopes Neto nasceu em Pelotas, na estância da Graça, filho de uma tradicional família da região, proprietária de muitas terras. Aos treze anos, foi para o Rio de Janeiro a fim de estudar no famoso Colégio Abílio. Retornando ao Rio Grande do Sul, fixou-se para sempre em Pelotas, então uma cidade rica para os padrões gaúchos. Cerca de cinquenta charqueadas formavam a base de sua economia. Porém, engana-se quem pensa que Simões andava de bombacha. Seus hábitos eram urbanos e as histórias contadas nos Contos Gauchescos eram baseadas em reminiscências, histórias de infância e, bem, a verdade ficcional as indica como de autoria de Blau Nunes, não? A epígrafe da obra deixa isto muito claro: À memória de pai. Saudade. Mas voltemos ao autor.

   Sua vida em Pelotas não foi nada monótona. Abriu primeiro uma fábrica de vidro e uma destilaria. Não deram certo. Depois criou a Diabo, uma fábrica de cigarros cujo nome gerou protestos da igreja local. Seu empreendedorismo levou-o ainda a montar uma empresa para torrar e moer café e a desenvolver uma fórmula à base de tabaco para combater sarna e carrapatos. Fundou também uma mineradora. Nada deu muito certo para o sonhador e inventivo João, que foi também professor e tabelião, mas ao fim e ao cabo apenas sobreviveria como jornalista em Pelotas, conseguindo com dificuldades publicar seus livros e folhetins, assim como montar suas peças teatrais e operetas. Este faz-tudo faleceu em total pobreza.

A primeira edição de Contos Gauchescos foi publicada em 1912. Se o ano é este, a data exata da publicação parece ter sido perdida. Na primeira página do volume é feita a apresentação do vaqueano Blau Nunes, que o autor afirma ter sido seu guia numa longa viagem pelo interior do Rio Grande do Sul.

PATRÍCIO, apresento-te Blau, o vaqueano. Eu tenho cruzado o nosso Estado em caprichoso ziguezague. Já senti a ardentia das areias desoladas do litoral; já me recreei nas encantadoras ilhas da lagoa Mirim; fatiguei-me na extensão da coxilha de Santana, molhei as mãos no soberbo Uruguai, tive o estremecimento do medo nas ásperas penedias do Caverá; já colhi malmequeres nas planícies do Saicã, oscilei entre as águas grandes do Ibicuí; palmilhei os quatro ângulos da derrocada fortaleza de Santa Tecla, pousei em São Gabriel, a forja rebrilhante que tantas espadas valorosas temperou, e, arrastado no turbilhão das máquinas possantes, corri pelas paragens magníficas de Tupanciretã, o nome doce, que no lábio ingênuo dos caboclos quer dizer os campos onde repousou a mãe de Deus

(…)

Genuíno tipo – crioulo – rio-grandense (hoje tão modificado), era Blau o guasca sadio, a um tempo leal e ingênuo, impulsivo na alegria e na temeridade, precavido, perspicaz, sóbrio e infatigável; e dotado de uma memória de rara nitidez brilhando através de imaginosa e encantadora loquacidade servida e floreada pelo vivo e pitoresco dialeto gauchesco.

(…)

Querido digno velho!
Saudoso Blau!

Patrício, escuta-o.

Após esta apresentação — de pouco mais de duas páginas na edição pocket da L&PM — , está pronto o cenário para os 19 contos (ou “causos”) que o narrador Blau Nunes contará a seu patrício. Blau é o protagonista de algumas histórias, em outras é um assistente interessado que banha os fatos de intensa subjetividade. E aqui chegamos ao que o livro apresenta de mais original: o trabalho de linguagem de Simões Lopes Neto. Os contos são “falados”, são “causos” contados por Blau e a linguagem acaba por ser uma representação da fala popular misturada a uma inflexão erudita — certamente a de Simões — , transformando-se numa terceira forma de expressão. Numa belíssima terceira forma de expressão. Sabemos que o leitor do Sul21 já está pensando em Guimarães Rosa e tem toda a razão. Rosa confessou que seu texto tinha muito da influência de Simões. O gaúcho abriu as portas para as grandes criações do autor de Grande Sertão: Veredas e esta afirmativa não é a do ufanismo vazio que procura gaúchos em navios adernados, mas uma manifestação de consistente orgulho.

E, assim como nos livros de Rosa, a linguagem de Simões Lopes Neto talvez soe estranha à princípio, apesar de que o estranhamento é muito menor do que aquele com que se depara o leitor do mineiro. Se lá Rosa cria palavras utilizando seu enciclopédico conhecimento etimológico, se lá utiliza-se até de línguas eslavas; aqui Simões transforma o sotaque da região onde nasceu. Há os adágios populares, há os muitos gauchismos do campo e da cidade e há as expressões típicas da fronteira, recheadas de espanholismos. A memória de Blau Nunes é a memória geral do pampa narrando os acontecimentos principais de sua história que, em mosaico, formam uma visão subjetiva da região e de sua gente. Era 1912, não havia regionalismo, estávamos a 10 anos da Semana de Arte Moderna e 4 anos após o falecimento e Machado de Assis. Estamos, pois, falando da literatura de um pioneiro.

Mas Simões Lopes Neto não trabalha apenas a linguagem, é um escritor que sabe criar constante subtexto. Ou seja, há as palavras, mas há um grande contador de histórias trabalhando-as, jogando informações subjacentes que reforçam ou contradizem o que está sendo contado. Isto pode ser sentido no pequeno conto O negro Bonifácio e no tristíssimo No Manantial — segundo e terceiro contos da coleção.  Talvez no Manantial seja o melhor conto escrito por autor gaúcho até o surgimento de Sergio Faraco. Apenas em 1937, com a publicação de Sem rumo e Porteira fechada (1944), de Cyro Martins, e de O Continente (Erico Verissimo, 1949), a literatura do RS produziria outras grandes figuras ficcionais gaúchas. Dizia Tolstói: Se queres ser universal começa por pintar a tua aldeia. E Blau Nunes, na condição de narrador e protagonista dos Contos Gauchescos, é um gaúcho de qualquer latitude.

Milton Ribeiro

http://www.sul21.com.br





Arte de Gilmar Fraga


Patricia Lima - Jornalista da RBS descreve o sequinte:

  Em 9 de março de 1865, na primeira manhã de sol após um aguaceiro que já durava dias e tornara intransitáveis as estradas que ligavam o interior ao centro urbano de Pelotas, Thereza de Freitas Lopes deu à luz seu segundo filho na tranquilidade da Estância da Graça, assistida por mucamas e parteiras e por um médico atrasado, que ao se apresentar já viu o trabalho de parto em pleno curso. O menino, mirrado e estrábico, recebeu o nome de João Simões Lopes Neto. Passados 150 anos desse nascimento, a biografia desse guri, mais tarde autor de Contos Gauchescos e Lendas do Sul, ainda suscita acaloradas discussões e sua obra recém começa a ganhar um primeiro – e ainda incompleto – olhar de conjunto.

O biógrafo Carlos Francisco Sica Diniz, que publicou em 2003 João Simões Lopes Neto: Uma Biografia, a reconstrução mais completa da vida do pelotense, aponta que o futuro escritor nasceu meses depois dos primeiros movimentos da Guerra do Paraguai, o maior conflito armado da América Latina.

– Muitos charqueadores emprestaram dinheiro ao Império para financiar a Guerra e libertaram escravos para servirem ao Exército. O avô do escritor, o Visconde da Graça, foi um deles, o que lhe rendeu o título de nobreza. Era dinheiro da indústria do charque, que estava aquecida naqueles tempos e só declinaria a partir dos anos 80 do século 19. Pode parecer paradoxal, mas foi neste ambiente de prosperidade e guerra que o escritor viveu sua primeira infância – pondera o biógrafo.

Simões Lopes Neto viveu na Estância da Graça até os nove anos, depois alternou-se entre o campo e a cidade. Aos 11, após a morte da mãe, foi mandado ao Rio para morar com um parente e terminar seus estudos – uma passagem pela então Capital federal da qual se tem muito pouco documentado. Ao voltar a Pelotas, em 1884, Simões Lopes Neto começou a colaborar voluntariamente na imprensa pelotense com poemas, textos e crônicas e a empreender suas primeiras tentativas de estabelecer-se como comerciante e industrial. Mais ou menos na mesma época, fez uma viagem decisiva. Percorreu campos sem fim até a Estância São Sebastião, de propriedade de seu avô e localizada em Uruguaiana. O responsável pelo local era o pai de João, Catão Bonifácio, que vivia lá como um autêntico gaúcho. No caminho e nessa estância, além de ter mais contato com o estilo de vida e com a personalidade do pai, que lhe serviriam de inspiração para alguns personagens dos Contos Gauchescos (Tandão, do contoJuca Guerra, é a referência mais direta ao pai), o escritor também ouviu pela primeira vez o relato oral da Salamanca do Jarau.

Em 1890, engajou-se na sua primeira iniciativa profissional, abrindo um escritório de despachante. Empreendedor, teve grandes ideias e experimentou, com elas, grandes fracassos: foi sócio ou diretor em empreendimentos como uma vidraria, uma destilaria, uma empresa de venda de café e até uma mineradora para explorar prata em Santa Catarina. Um dos negócios mais duradouros foi a fábrica de cigarros Marca Diabo, batizada assim para diferenciá-la das outras, todas com nomes de santos. Neste entremeio casou-se, aos 27 anos, com Francisca Meirelles Leite, a Dona Velha. Neto de um dos homens mais ricos e poderosos da província, Simões Lopes Neto viveu a juventude segura e despreocupada de um herdeiro. Com a morte do avô, em 1893, a vasta herança diluiu-se entre os 22 filhos resultantes dos dois casamentos do Visconde.

  Ele escreveu durante toda a vida adulta. No final do século 19, publicou e encenou várias peças, algumas delas com grande sucesso até mesmo em teatros de Porto Alegre. Fez conferências e discorreu sobre uma infinidade de temas nos jornais pelotenses. Mas foi no fim da vida, quando trabalhava como professor e jornalista, que engendrou sua obra maior – os Contos Gauchescos, em 1912, e asLendas do Sul, em 1913, textos que viu publicados e recebidos sem alarde pela crítica. Morreu aos 51 anos, em 14 de junho de 1916, vítima do rompimento de uma úlcera duodenal que já o castigava há alguns anos. 

HISTÓRIA AINDA POR CONTAR
A ideia é promover uma programação que não apenas comemore, mas contribua para a divulgação da obra do pelotense. É o eco de um movimento iniciado há muito tempo, mas que ganha força lentamente. O primeiro ato desta retomada foi encenado pelo jornalista Carlos Reverbel, que nos anos 1940 mergulhou nos esparsos rastros deixados por Simões para recompor sua trajetória. É dele a primeira biografia do pelotense, Um Capitão da Guarda Nacional: Vida e Obra de J. Simões Lopes Neto.

Em 1949, quando os Contos... e as Lendas... foram publicados em uma edição caprichada da Editora Globo, o escritor voltou a frequentar o universo literário, ainda que timidamente. Foi a partir daí que começaram a surgir os primeiros esforços críticos sobre a obra de Simões. Nomes como Flávio Loureiro Chaves, Lígia Chiappini e Aldyr Garcia Schlee contribuíram de forma decisiva para o ingresso do escritor no universo acadêmico.

Hoje, uma nova geração de estudiosos trata de rever o material já conhecido e, principalmente, descobrir obras inéditas ou pouquíssimo frequentadas. É o caso de dois textos até então desconhecidos, Terra Gaúcha: Histórias de Infância e Artinha de Leitura, publicados em 2013 pela editora Belas Letras, sob a coordenação do professor da UFRGS Luís Augusto Fischer, que revelam uma face nova de Simões Lopes Neto: seu malogrado projeto pedagógico, que apesar de não ter sido levado a cabo, foi moderno, inovador e teria feito evoluir o sistema educacional brasileiro, caso tivesse obtido sucesso.

Um parêntese é pertinente para tratar deste episódio. Descobertos em circunstâncias fantásticas, os livros abrem caminho para, um dia, editar, finalmente, a obra completa (completa mesmo) de Simões Lopes Neto. O livroTerra Gaúcha: Histórias de Infância, por exemplo, foi encontrado em um baú entregue pela viúva do escritor ao jurista pelotense Mozart Victor Russomano e que, com a morte deste, foi adquirido pelo apaixonado pesquisador Fausto Domingues. O baú ainda está lá. E há material inédito nele.

Com tantas descobertas e com gente nova pensando sobre essas questões, surgem olhares mais abrangentes, que finalmente livram Simões da pecha de regionalista e o posicionam como um intelectual que pensou de forma moderna e progressista o seu tempo. “Em se tratando de atividades ligadas à cultura, é um regozijo para qualquer pesquisador da obra simoniana constatar que o homem que falava da canalização do Arroio Santa Bárbara, da necessidade de uma rede de esgotos efetiva em sua cidade, era o mesmo que escrevia sobre Darwin, que traduzia do francês, que escrevia em italiano e que se correspondia com intelectuais de ponta da época”, afirma a professora Heloísa Netto, mestranda em Literatura Brasileira pela UFRGS, que defende em abril uma dissertação que analisa a atuação de Simões Lopes Neto como intelectual e pensador.

Tendo em conta essa nova onda de estudos e olhares sobre a obra de Simões Lopes Neto, volta a pergunta que moveu antigos pesquisadores, como Carlos Reverbel: o que o criador de Blau Nunes tem a nos dizer, 150 anos depois de seu nascimento no remoto interior do Rio Grande do Sul?

– O mérito do Simões é literário. Ele inventou uma arquitetura narrativa capaz de sintetizar elementos que andavam dispersos, como a linguagem oral popular e o luto por um mundo que estava em vias de morrer, dando lugar à modernização. Blau Nunes é uma estratégia genial, pois dá voz natural e verdadeira ao único narrador possível para aquele mundo. Este é o maior acerto do escritor e por isso ele é grande. Mesmo assim, sua crítica ainda é esparsa e parte da sua obra está dispersa. Quando se trata de um escritor maiúsculo como ele, até lista de compras interessa, para compreender seu pensamento – afirma Luís Augusto Fischer

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